sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

O Eu e o Mundo

O emaranhado de ruídos da cidade martelava meus ouvidos, pressionando meu crânio quase como uma força corpórea. Sentei-me na mureta que dava para a calçada.
Naquela tarde incômoda, minha mente fervilhava. Afazeres, tarefas sem fim, tantas, e o medo de esquecer alguma delas como pano de fundo. Sequer o motivo de cada uma era lembrado; apenas o dever inexorável pairava à minha frente. Era tão importante assim?
Pessoas conversando alto, tossindo, motores de ônibus rugindo, e mil outros veículos, uma sirene de polícia.
Em meio ao grunhido uniforme, uma buzina alta, aguda e estridente se destaca, assustando-me. Eu aguardava o carro cinza me buscar, enquanto a ansiedade devorava-me de dentro pra fora, como vermes a um cadáver.
Uma brisa fresca cortou o insuportável manto de calor daquela tarde. Nesse momento, respirei fundo e decidi me acalmar.
Apanhei os fones de ouvido. O fado da aleatoriedade a que chamam Destino trouxe a música mais adequada, talvez. Um heavy metal moderno, estridente e com trechos melódicos orientais, clamando rebelião entre becos de um subúrbio. A música urbana da Nova Era. Ao menos era um barulho ordenado, com algum sentido.
Eu passei a observar o recorte de paisagem que se descortinava ante mim. A arquitetura insípida dos prédios era opressiva. Senti-me preso numa sala apertada, sem saída.
Mas havia uma janela.
Acima dos edifícios, a abóbada azul despontava, cobrindo tudo com seu véu infinito.
Existia uma saída; apenas inalcançável. Mas vê-la me tranqüilizou.
Logo, vi que em meio à massa áspera, sólida e indiferente de concreto, brotava vida.
Árvores magras erguiam seus galhos folheados sobre os carros e fios elétricos, em direção à pequena janela celeste. Em várias, flores róseas brotavam. Havia cor, afinal.
Desliguei a música barulhenta, e senti um distanciamento de tudo.
Como águas tranqüilas de um lago ao cair da noite, meu espírito se amainou, manso.
Fechei os olhos, respirei fundo novamente, e tomei consciência de mim.
Senti meus dedos do pé, formigando levemente sob a meia; senti meus pés e minhas pernas; fluidos hormonais percorrendo minha barriga, o alto do peito, o coração palpitante, os ombros envergados, passando de um estado de tensão para o relaxamento. Minha cabeça ficou leve, e pendeu confortavelmente.
Dentro dela, porém, houve um despertar.
Na escuridão sob as pálpebras, meu pensamento fluiu para várias lembranças e sensações imediatas, e depois ficou estático. Ele mesmo saiu de cena, e as diversas imagens, emoções e sentimentos, desejos e memórias, amor, raiva, medo, se afastaram, pouco a pouco, até se tornarem longínquos reflexos de algo distante.
E, por trás de tudo isso, no fundo deste quarto escuro, observava, serenamente, o Eu.
O Eu, a única certeza perene e indissolúvel, meio à tempestade torrencial de incertezas.
O incerto, porém, não importava. A autoconsciência despida das volubilidades efêmeras e humanas, erguera-se incólume, confiante, poderosa e sábia.
E essa certeza perece um fio condutor entre o meu Ser e a realidade. E o curso constante do Destino, feito de inconstâncias inúmeras, parecia se desenrolar para mim.
Livre do pesado invólucro, eu finalmente tinha o controle.
Abri os olhos, olhei ao redor, e tudo teve uma nova perspectiva. Senti-me leve.
Um rapaz moreno, de terno, passou por mim rapidamente. Observei-o se afastar. De repente, as pessoas não eram mais vultos sem rostos que passavam, indiferentes. Eram indivíduos, iguais a mim. Eu me via em cada um deles, e perguntava-me seus nomes. Para onde estariam indo, quais eram seus sonhos, seus medos?
A silhueta de uma garota ruiva aproximava-se do outro lado da rua. Seus cabelos alaranjados esvoaçavam atrás de si, em contraste ao vestido claro.
Ela chegou bem perto. Não era bonita. Seu rosto simples repleto de sardas tinha algo de sublime, contudo. Ao perceber que eu a olhava, ela ergueu os olhos para mim por uma fração de segundos, e voltou a descê-los, tímida.
Apreciei esse instante, até que ele passou. Ela já estava longe.
De novo, senti o peso do calor. Suor escorreu em minha nuca, até a gola da camiseta preta. Por que preta, afinal?
A luz tornava-se avermelhada, anunciando o fim do dia.
Então, algo vibrou em meu bolso. O celular tocava. Não iriam mais me buscar.
Levantei-me da amurada, e coloquei-me a caminhar, sem pressa, observando tudo com interesse.
Atravessei a avenida, e logo estava na praça. Lá, uma cena alçou minha atenção subitamente.
Bem no centro da praça, uma fonte expelia água, vistosa. E, entre os feixes que jorravam, havia uma criança.
Um menino, gordinho, de cueca, que parecia um indiozinho, brincando e refrescando-se na água, rindo imensamente, sem se importar com mais nada. Apenas um menino.
Aparentemente, não havia adulto algum cuidando dele por perto. Parecia algo fora do lugar. Uma contradição viva. Uma criança, brincando na fonte, sozinha, enquanto o mundo dos adultos ocupados indo pra lá e para cá continuava a girar. Fiquei perplexo. Onde estavam os pais dele? Olhei em volta e não os encontrei. Em seguida, instintivamente, procurei pelo rosto de outros, para ver se estavam tão consternados quanto eu. Um senhor de cabelos brancos, sentado ao longe, parecia também observar o menino, curioso, mas poderia ser apenas uma impressão minha.
Continuei andando, não sem antes dar uma olhada para trás de novo. O menino batia na água com as mãos. Andei mais um pouco, tentando absorver a cena. Que energia infantil, que inocência, que simplicidade! A singeleza daquela criança parecia resumir em si todos os destinos humanos em sua busca eterna por felicidade, por completude.
Um pombo bicava uma migalha, à minha frente. De certa forma, o pombo também representava uma energia: a constante força da natureza, implacável, defluindo em todos os seres com vida, mas ainda una. Uma única Força buscando apenas a sobrevivência, ou em outras palavras, permanecer, prolongar um existir já fadado a ter fim.
Mas o menino não queria sobrevivência. Ele queria a água gelada que jorrava maravilhosamente, tocando sua pele, refrescando-o naquele entardecer. Ele queria o divertimento de um instante único, que poderia marcá-lo para sempre, ou logo ser esquecido.
Eu nunca mais o veria. Não sei se ele estava de fato sozinho, nem nunca saberei.
Mas o que sei eu, afinal? Sei que existo. Sei que o menino também. E, do mesmo modo que a planta buscando o sol é como o tigre que devora a presa, eu sou como o menino.
Apenas uma criança, na ânsia de ser feliz.