terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Delírios Proféticos - Capítulo 2

A Oração

Um baque seco o acordou. Abriu os olhos vagarosamente e olhou para o chão. O controle remoto se partira. Ajeitou-se no sofá, esfregando os olhos, e encarou a televisão. O apresentador do programa anunciava, com um sorriso simpático e proditório, outro produto de qualidade duvidosa, e incentivava os espectadores a comprá-lo. “Farsantes imbecis”, resmungou ele, levantando-se e desligando a TV.
Raios de sol dispersos atravessavam a cortina no final daquela tarde. Uma monotonia desagradável e insípida permeava aquele ambiente, que de outro modo seria aprazível e acolhedor.
Sentou-se novamente, e enxugou o suor do rosto com as mãos. Sua cabeça latejava de dor. Sentiu-se completamente desanimado e entediado. Queria voltar a dormir apenas para perder a consciência, mas não tinha mais sono. Tonto e atordoado, respirou fundo. Tentou pensar em sua vida, no que acontecera recentemente e no que deveria fazer a seguir, em uma tentativa de organizar sua mente e se localizar no Universo. Não conseguiu.
Sentiu então, uma sensação estranha e desesperadora, um súbito tédio, profundo, na alma. Percebeu que não tinha mais um objetivo pelo qual lutar, nada, nem mesmo um sonho distante e esquecido, para motivá-lo a dar o passo seguinte. Nada do que existia em sua vida parecia fazer sentido. Trabalhava em um emprego enfadonho, realizando uma tarefa prescindível, e até mesmo as coisas que seu dinheiro comprava lhe pareciam agora inúteis, desnecessárias. Vivia de forma deplorável, sem amigos, sem família. Não amava ninguém, nem mesmo a si próprio. Não desejava nada, não sentia uma única sensação a não ser o tédio, como se sua alma estivesse eternamente anestesiada. Não queria mais viver; tampouco desejava morrer. Sentiu-se aprisionado pela própria realidade, e sôfrego por se libertar daquela prisão. Perdido entre pensamentos sufocantes, e sem saber como se aliviar, decidiu sair de casa, caminhar um pouco e relaxar. Ao passar pela soleira da porta, tampou os olhos com a mão, protegendo-os do sol, que chegava ao fim de seu percurso diário. Sua pupila contraía-se lentamente, enquanto uma brisa lânguida e repentina agitava seu cabelo, trazendo um cheiro repugnante de lixo e poluição. Caminhou lentamente pela rua, apreciando o silêncio. Não sabia ao certo para onde ia, mas sua alma estava ávida por movimento, e mesmo sem direção, caminhar era melhor do que ficar parado.
Paulo trabalhava em um escritório de contabilidade. Acordava cedo todos os dias, ia para o escritório, e permanecia naquele ambiente insípido de paredes brancas o resto do dia, para realizar um trabalho insuportavelmente entediante, em um em meio à pessoas falsas e fúteis, as quais ele aprendera a odiar em segredo. Nem mesmo seu razoável salário compensava aquela rotina miserável. Sentia-se inútil. Era inútil. Afastava-se das pessoas, evitando qualquer vínculo. Ora, entre participar de uma sociedade podre e corrompida, e ser antissocial, ele optara pela última opção. Não tinha amigos, que dirá uma namorada. Seu pai morrera antes que ele tivesse consciência disso, e sua mãe logo depois, quando ele tinha sete anos. Foi criado num orfanato, e logo teve que aprender a se virar no mundo; uma tarefa que ele não realizou com eficácia. A única recordação de sua família que ele já teve era um antigo álbum de fotos, que ele tratou de arremessar na lareira sem cerimônia. Viver do passado é tolice, viver de um passado do qual nem se lembra é  imbecilidade ou algo pior. Sua mente trabalhava à esse ritmo, mas seu coração era amargurado e solitário. Era sensível, ainda que não admitisse.
Ele caminhava, simplesmente isso. Observando as pessoas que ainda trafegavam, e os cães sem dono perambulando. As pessoas não pareciam muito diferentes deles. Ambos se preocupavam apenas com seus problemas pequenos e mundanos, sem nem ao menos tentar imaginar que à cima de suas cabeças existia um Universo infinito e inexplicável, de astros e estrelas, vazio e matéria, regidos por leis físicas, talvez até mesmo metafísicas, que eles nem poderiam sonhar. Focavam-se no que estava à frente, guiados pela força da natureza e por seus instintos animalescos de sobrevivência. Eram apenas seres vivos, pouco diferentes de uma ameba. Eram apenas... poeira no vento.
Quanto mais se aproximava do centro da cidade, mais intenso era o cheiro de esgoto mesclado a monóxido de carbono, e como de propósito, uma brisa importuna insistia em empurrar o fedor na direção do seu rosto. Se aquele passeio tinha como objetivo fazer esquecer os problemas, não estava dando certo.
O primeiro choque foi perceber que era domingo, e que portanto, o dia seguinte seria segunda-feira. Paulo logo começou a blasfemar, e em seguida, a relembrar as contas que teria que pagar e os afazeres que deveria concluir. Voltou à sua rotina infernal mais cedo do que pretendia.
Escureceu um pouco, e o ar ficou mais puro, a medida que se aproximava de um parque arborizado. Contudo, ele nem se deu conta disso, sua cabeça perdida em pensamentos e cálculos.
No parque, crianças corriam e gritavam, agitadas. Todas sujas de areia, não tinham preocupações, queriam apenas brincar. Tenho que pagar a conta de luz até amanhã. O sol alaranjado iluminava o parque, atravessando os galhos das árvores. Não posso pegar mais dinheiro emprestado. Borboletas coloridas esvoaçavam entre as cabeças, ou rodeando as flores primaveris. Ah, merda! Amanhã é segunda! Um casal namorava sobre a grama. Não aguento nem olhar para a cara do meu chefe.
Começou a se afastar do parque. Aos poucos, o ar puro foi se tornando poluído e pesado novamente. A fumaça dos carros em sua face faziam seus olhos lacrimejarem, enquanto ele caminhava entre montes de lixo espalhados na rua. Entre o lixo, haviam pessoas estiradas no chão. Um mendigo brincava, equilibrando latinhas para formar um castelo. Ele olhou para Paulo, e deu um sorriso que faltava alguns dentes. Paulo não pôde evitar de rir, mais por achar graça do que para retribuir o sorriso. Ele costumava sentir-se feliz ao ver os mendigos. Pensar positivo é saber que eu poderia estar pior. Quando criança, tinha piedade, até que um dia sua mãe o repreendeu por dar algumas moedinhas a um deles. A partir de então, via-os com indiferença. E agora, usava o sofrimento deles como meio de suavizar o próprio. Sentiu-se mal por pensar assim. E em seguida, sentiu-se bem por sentir-se mal. E continuou caminhando um pouco mais animado. Consciência é um instrumento fascinante. Depois se arrependeu por ter pensado isso.
Uma nuvem negra pairava no céu, vinda de uma chaminé distante. Acho melhor resolver meus problemas amanhã. Uma pequena capela reunia algumas pessoas no fim da rua. O sino da capela badalou, e som grave ressoou, como as batidas ritmadas de um coração. Naquele momento, o Sol vermelho se punha em um arrebol de cores vibrantes e vivas que contrastavam com o outro lado do céu, azulado e escuro, em um espetáculo fascinante e assustador ao som das badaladas taciturnas que ressoavam. As pessoas se aproximavam da capela devagar. Ele decidiu segui-los. Se rezar não ajudasse, ao menos não iria piorar. Não custava tentar.
Dentro da pequena igreja, os sussurros ecoavam, indefiníveis. À sua frente, acima do altar, uma bela cruz de madeira parecia erguer os braços para abraçar a todos os que lá estavam. Ao redor da cruz, vitrais coloridos, que retratavam passagens bíblicas, tornavam o lugar azulado e soturno, como se uma aura mística pairasse sobre os bancos de madeira, que aos poucos eram ocupados. Paulo ajoelhou-se na madeira dura e curvou o corpo. Apoiou a testa nos punhos e fechou os olhos.
Meu Senhor, livre-me de uma vida medíocre. Foi sua oração.

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